quarta-feira, 13 de maio de 2009

"pequeno espanador de tristezas [a derradeira confissão?]”

há qualquer coisa de lágrima numa celebração minha.

se soubesse aceitar a beleza das lágrimas não tinha que [me] explicar a origem delas e podia sorrir com as bochechas molhadas mais vezes sem as rugas.

às vezes uma celebração minha é uma timidez – um dia tenho que conseguir abandonar isso e elevar-me a lesma, gambozino, helibélula. acreditar no fio que o grilo ata às estrelas lá longe no universo vincado de negrume; emprestar a minha pele numa jangada quase a afundar; afastar nuvens que dançam nas peles do mar; soprar uma madrugada pra ela voltar a mim [ainda gostava de ter uma crise de asma por excesso de nuvens nos pulmões respiratórios].

sem ser só nas palavras vividas em poesia, pra mim a morte devia ser um voo dançado por um papagaio-pipa – eu quero ser a aragem desse voar. se morrer um dia vou celebrar a palavra morte com incensos e música cantada por andorinhas – a morte anda por aí à solta e a vida afinal parece é uma máscara...

«a palavra vida é maior que a palavra morte», disse-me o meu sobrinho tchiene hoje que ainda faltam dezasseis dias pra ele nascer.

quando ele chegar ao mundo vou mostrar-lhe uma garça gaga que encontrei num poema e me passou a gaguez dela. eu passei a gaguez toda pra uma tarde e foi bonito ver a tarde esticar-se porque não sabia bem como pronunciar o definitivo pôr-do-sol. a noite ficou extenuada – à espera de chegar.

há qualquer coisa de adélia na palavra fé. talvez porque ela seja uma mulher de palavras pesadas com tanta leveza e saiba cavalgar medos selvagens. há na obra dela manchas leves de infância – essa varicela foi muito manuseada por luuandino [o que viajava com intimidade pelas ruas de antigamente, passando por tetembuatubia, kinaxixi, makulusu, olhos das crianças, pássaros e peixes]. certa noite, no lubango, vi o joão vêncio pendurado numa estrela; ao pé da casa onde sonhei nesse serão havia uma represa que era doadora de ruídos bons – apadrinhados por sapos gordos. espreitei pela janela fechada e quase cometi o erro de olhar um gambozino nos olhos. fechei os olhos e abri a janela, limitei-me a olhar assim as estrelas brilhantes numa ternura interna que eu lembro pouco de frequentar [no lubango a ternura brota em mim sem cerimónias].

às vezes uma chuva molhada é uma coisa boa para escorregar momentos em direcção a mim. quando uma chuva molhada cai sobre o mundo redondo, as coisas da vida e a vida das coisas encontram-se num quintal vasto. foi sob uma chuva molhada em canduras que encontrei as barbas do meu pai num poema e o sorriso da minha mãe noutro. foi nas entrelinhas dum poema ensopado que encontrei, várias vezes, a autorização interna pra falar a palavra amor [vou tentar não apagar isto: eu tenho certo receio da palavra amor, espero só que ela não me tenha receios também; seria triste].

foi com as mãos sujas de restos de amor que estiquei uma madrugada. quando digo a palavra madrugada também sinto um esticão no coração. se agora abuso muito das madrugadas é porque cada uma delas tem restos de amor que eu sempre vou perdendo. qualquer dia acumulo esses restos todos e faço uma construção de amor [talvez chame uma mulher pra se encostar ao outro lado dessa construção]. a palavra amor pode ser um labirinto com mais de catorze lados avessos. depois de esticar uma madrugada encosto a madrugada na minha pele e espero. a pele gosta de ser esculpida de novo muitas vezes na vida.

se puser um «v» na palavra esticar, poderei estivar uma madrugada. aí elevo-me a estivador de madrugadas e posso pensar num caixote com luar, um caixote com geada, caixotes pesados de estrelas, caixotes de nuvens carregadas de pingos, um caixote hermético com lágrimas, uma caixinha de costura com restos concretos de amor.

as palavras são muito bonitas também porque têm significados cicatrizados nelas – falo a palavra kwanza e sou invadido pelas belezas de um rio e o sol todo a bater-lhe nas peles da água escura que ele tem. o rio transporta o barro e os peixes e nunca ninguém se queixou de cócegas. há qualquer coisa de jangada na palavra rio. liberdade seria abraçar um jacaré sem lhe apetecer provar-me. eu queria fazer festinhas na carcaça antiga de um jacaré mas se ele me fizer festinhas magoa-me. vou olhar o jacaré de longe e o rio de perto – provar as minhas mãos nele. a pele do rio tem mais espelho que a minha e que a do jacaré. o céu e o sol gostam de verter reflexos nas peles paradas do rio kwanza e eu gosto de saber isso com os meus olhos atónitos de humidade. ali onde o mar beija o rio a espuma celebra o evento com pássaros que perseguem peixes. assim a poesia seja salobra ou salgada.

seria bonito ver os mangais depositarem raízes num poema meu – era a minha maior alegria fluvial.

há qualquer coisa de sapiência na palavra tristeza. e algumas tristezas não são de espanar – um dia posso descobrir que elas me fazem falta e ter que ir buscá-las na lixeira da catin ton.

vou encher-me de silêncios e imitar as pedras. adormecer entre as pedras pode ser que me contagie delas. depois de conseguir ser pedra vou exercitar o sorriso dessa pedra que eu for. com esse sorriso vou iniciar uma construção...

uma construção pode bem ser o lado avesso de uma certa tristezura.

Ondjaki.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Gambozinos, lesmas e outros de Ondjakem

Vou esperando que esta árvore morra
Para eu poder nascer outra vez.
Ou, pelo menos, nascer num universo de Tom
Onde ela cresça, enfim, sem humanamargura
Inventar um verso cósmico
Ao sorriso delirante desta formiga.
Mas não me quero humano agora
Não somos filhos legítimos desta Terra.

Onde sorris hoje?
Onde a Lesma deixou o rasto?
Quero encontrar-te de novo amigo.
Acho que te posso chamar - amigo!
Afectuoso ser onde me entendo.

Queria numa ligação dessas de rede,
Dessas que a aranha tece,
Perfurar a grandeza de um solo Africano
E tornar a tua língua - a Lisbuanda.
Porque vejo cidades em tudo
O que escreves. . .
Cidades revestidas da Lua – boa.

Nem vou à caça na mais que altiva das noites
Porque me ensinaste, que eles devem reservar sempre
Cores para um futuro obscuro.
E seria obsceno eu recriar um lugar de ti
Por mais que me encontre, em tudo o que semeias.

É bom saber do teu gosto pela palavra antigamente.
E ainda mais, saber por ti a nova margem da palavra
A tal domesticada por Guimarães Rosa.
Existe um concentrado de ti no meu mundo
E é por isso…bom de dizer – Ramela.

Mas intimida-me ler-te!
Intimida a raiz do teu lugar.
Onde a poesia se dá às avessas
Onde só o certo parece ter lugar.
Não que a procures…
Mas porque a vejo polida em pedra
Onde habitam Joões…e a tua infância.
E a Rosa dá lugar ao Neto
Para ver crescer o novo.

Mas é também perdida de lógicas…
Onde Drummondeias a Biologia da palavra.
E o que é isso de Miar à Couto?
Sou Sonâmbulo na tua Terra
E contribuo para a indefinição de Ondjakem
Mas deveríamos, todos,
Beber nele um bocadinho.
Onde celebramos o encontro
De musica e poesia.
Onde me encontro na árvore,
Onde sou até Gambuzino.
E nem que os miúdos me encontrem
Vou celebrar para sempre esta toada…


Como querer Onjakear o que há de bom!*


Rodrigo Camelo.
5 de Maio de 2009



* Citação de Djavan na letra (Sina)«Como querer Caetanear o que há de bom»