sábado, 19 de abril de 2008
Aquele Preto que Você Gosta no Coliseu
Gilberto Gil no Coliseu
Por: Tiago Pereira da Silva
Na noite em que o Coliseu “recebeu” o inebriante Gilberto Gil, fiquei com a certeza de gostar particularmente daqueles espectáculos musicais, que vão muito além da formalidade artística esperada. Que se vão transformando, ao longo do mesmo, numa espécie de aula musical, no melhor sentido do termo.
E ironia das ironias, dada na 1ª pessoa, por um ministro da cultura de um país que muitos teimam em ter, como 3º mundo. Digo Ironia por duas razões. E a primeira confunde-se com a segunda. É que poderia sempre soar a presunção, ou ter tiques de pseudo-burguês, exactamente pela inegável representação do cargo.
Isso tudo é impossível quando falamos de Gilberto Gil.
E é tão natural em Gil essa forma constante de comunicar com o público, que até nos esquecemos que é o ministro da cultura em exercício.
Um Coliseu com bancadas meio destapadas esperou ansiosamente pela chegada de um dos pais do Tropicalismo. E como vão longe esses tempos e como nunca o deixou de ser. Mas nem assim o público defraudou um Gilberto Gil intimista e revelador em palco.
Como começa toda a génese musical da sua obra, com uma simples voz e guitarra (violão), é exactamente como enxergamos o seu génio, sua densidade poética e seu canto “envelhecido” e sem o fulgor de outros tempos, mas, incrivelmente sintonizado.
O concerto começou com “Máquina de Ritmo” uma composição recente de Gil, que por sinal feita no Algarve.
Começava então, a aula de Samba-Canção e de todos os seus «afluentes». Um dos grandes temas da noite, numa versão repetição, extraordinariamente Bossa-nova. Seguiu-se um dos temas mais belos de toda a carreira de Gilberto Gil – “Esotérico”, aqui num registo acústico de violão a solo com a voz, só ao nível do encontrado no álbum “Acústico”. Aquele assovio (como se diz na variedade dialectal do Brasil, agora talvez sem C) tem mais originalidade, do que a carreira inteira de muitas bandas que para aí andam em muitos tops musicais do mundo. Pois eu sei(…) que vou ser espancado por esta ousadia… mas não retiro uma vírgula do que escrevi.
Mas voltando ao alinhamento do concerto, de um inspirado Gilberto Gil; até tivemos tempo para uma incursão ao fantástico mundo dos “The Beatles” numa curiosa transformação em Bossa de “When I´m Sixty Four”.
Eu que normalmente consigo ser extremamente preconceituoso, relativamente a ouvir novas versões musicais do universo dos Fab-Four, muitas vezes até por consagrados do Jazz, fiquei deliciado. Aliás, acho até, pela assinalada singularidade de alguns músicos brasileiros, que algumas das melhores versões que conheço de musicas dos «Beatles» vêm quase sempre da América Portuguesa. Vejamos o álbum “Qualquer Coisa” de Caetano com três peças únicas, do melhor que ouvi até hoje; ou a mais recente incursão de Rita Lee.
Um conhecedor Coliseu dos Recreios (entre múltiplos Brasileiros e Portugueses misturados) reconheceu logo pelos acordes, um dos temas mais intimistas de toda a carreira de Gil. Aquela em que talvez pela primeira vez, um músico-compositor Brasileiro revela tão explicitamente a sua alma feminina e talvez até um pouco mais, numa fabulosa versão de “Super-homem a Canção” a sua assumida homenagem ao seu irmão Tropicalista – Caetano Veloso.
É um pouco angustiante e revoltoso verificar na maior parte das criticas a Gilberto Gil, uma referência qualquer ao seu mano “Caetano”, eu contra mim falo. Se é inegável que Caetano tenha talvez atingido um grau maior na concepção artística no panorama musical no Brasil, também não deixa de ser justo considerar Gilberto Gil como o mais original e versátil músico da sua geração no Brasil, onde só entram nomes como: Caetano, Chico, Milton, Bosco, Lobo, Ben-jor e só para citar alguns. O próprio Caetano saberá melhor do que ninguém, que como músico, estará a milhas de distância de Gilberto Gil.
Com o tema “Metáfora” entramos numa aula de Literatura Portuguesa. E que aula, caros leitores! É que uma das características mais interessantes na poesia de Gil, sim porque peço desculpa aos formalistas da sua expressão canónica, mas o que este senhor escreve é poesia. E se nunca atingiu uma densidade e profundidade como os seus contemporâneos Chico e Caetano, no entender de muitos críticos, também talvez não menos seja verdade que nenhum outro Letrista brasileiro, brincou com as potencialidades de cada palavra, quanto à sua aplicabilidade como gíria, como substantivo abstracto, como “acto da criação”, como fez por exemplo com a letra “Rebento”. Tornando-se para mim, uma das suas inegáveis marcas de estilo. E nestas múltiplas brincadeiras de “atingir a meta” ou “deitar fora”, como este senhor aproxima os jovens da sua língua. Haveria melhor tributo ao nosso maior património cultural?
“Chiquelete com Banana”, “Aquele Abraço” e “Expresso 222” e “Andar com Fé” embebidas na força do violão de Gil e já com a presença do músico Ben-Gil (seu filho) e até poderia não ser, porque o que importa avaliar aqui é a qualidade como instrumentista, e não tanto se está em palco por ser o “filhinho do papai”, compõe o lote de temas consagrados de Gil (vamos recorrer á horrível palavra: Clássico) para situar o leitor. Todas elas com as respectivas aulas de Samba e Baião. Houve tempo para os temas novos como: “Queixa do Tatami”; ou “Despedida de Solteiro” e “Faca e o Queijo” esta última evidencia uma outra particularidade de Gil, o seu inteligente recurso ao humor na escrita de suas canções. Um dos temas da noite não tanto pela letra, mas pelos harmónicos da guitarra de Ben e de Gil, foi a novíssima para o público “Rouxinol”.
Se o caro leitor quiser ter um “cheirinho” do que é Gil no seu melhor, como do muito que nós presenciamos na noite de quinta-feira. Vá ao Youtube e escreva simplesmente «Gilberto Gil 1979» e aparecer-lhe-á um vídeo com “Aquele Abraço e Back in Bahia”, esta última um portento de versão, mas se ouvir atento as brincadeiras finais de Gil a concluir “Aquele Abraço” (também ela uma gíria carioca da época) fazendo da sua voz um instrumento, quase a fazer lembrar a cuíca…bem… aquilo é sem palavras!
Aquilo… ninguém faz como ele! Disse.
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