segunda-feira, 13 de outubro de 2008

À conversa com Eça...



Por: Tiago Pereira da Silva

A propósito do filme”Crime do Padre Amaro”- exibido há pouco tempo num dos nossos “sensacionais” canais, devo confessar que me arrepiei, para não variar, e, arrepio sempre que vejo o universo de Eça explorado desta maneira. Não querendo recorrer a nenhuma figura de estilo demasiado previsível lembrei-me muito, por exemplo e sem satirizar a um extremo, do Sketch dos Gato Fedorento - «Javardola». Parece um projecto feito às três pancadas, uma procura de receita através de uma fórmula miraculosa muito simples chamada Soraia Chaves. Á desculpem! Mamas da Soraia Chaves.
Não pensem que tenho algum tipo de implicação com o cinema português, tenho sim com este tipo de filmografia em Portugal, que mesmo recorrendo a um vastíssimo leque de personalidades do nosso cinema e televisão, entre consagrados e figuras mediáticas que se tornaram actores, não conseguimos nunca, observar uma narrativa sólida, uma direcção de actores credível, uma banda sonora interessante e valha nos deus, diálogos bem construídos. Em vez disso, temos mudanças súbitas de planos que começam com os eternos: foda-se!

A utilização de Soraia Chaves como fórmula para o sucesso comercial através da utilização da sua imensa telegenia, não prestigia nem o cinema português, nem a actriz, nem o publico, ainda para mais quando no caso de Soraia é ingrato o balanço da sua actuação, considerando que esta se revelou em Call Girl muito mais que uma simples redução a um conceito estético visual. É possível dizer-se que estamos na presença de uma potencial actriz. E digo potencial, porque actrizes – actrizes, são poucas e talvez percebamos quando olhamos e ouvimos um monólogo qualquer de uma tal de Beatriz Batarda, só para citar um exemplo, talvez a melhor da sua geração.

Mas desviei a atenção, do que me propunha partilhar com o caro leitor, neste À Conversa Com Eça. A minha estupefacção em algumas adaptações do universo literário de Eça de Queirós para o cinema, quer português quer estrangeiro, também são associadas a algumas agradáveis surpresas. Infelizmente em menor numero.

A Eça podemos dever, por exemplo, a nossa forma de escrever. Um homem que foi em quase tudo um visionário, dentro de um séc. XIX rico e complexo para a história da literatura escrita em português, e digo escrita em português porque estou a lembrar-me por exemplo do seu “rival” - Machado de Assis no Brasil.

A forma desprestigiante com que se adaptam determinadas obras de Eça para o cinema, deixam-me totalmente incrédulo. Por mais que sua ficção literária seja de um preciosismo e de um realismo muito característico, levando mesmo ao nascimento de uma nova corrente literária, não perceber cirurgicamente a exigência de um trabalho quase de dramaturgia numa adaptação de Eça ao cinema, por parte de um cineasta, é quase tão grave como ter a tentação de “pegar” na intriga/trama de uma historia de Eça e reduzia-la a um conceito telenovelesco.

Sejamos frontais e perdoem-me desde já a expressão, mas o homem era muito à frente para o seu tempo. E sem pegar na diferença de estilo que veio introduzir, olhemos por exemplo para a temática de algumas das suas obras mais reconhecidas do grande público. Escrever por exemplo em 1875 uma obra como “O Crime do Padre Amaro” ou o “Primo Basílio” creio que três anos depois, era um manifesto contra-corrente, uma critica à sociedade hipócrita reinante sobretudo na Aristocracia Lisboeta do séc. XIX. No ataque à instituição Igreja há mais actualidade em Eça, do que na maior parte dos escritores contemporâneos. Tal como é muito difícil encontrar alguém mais satirizante para este século do que o próprio poeta barroco Gregório de Matos.

A forma detalhada como Eça constrói a caracterização das suas personagens, sempre me anestesiou. Encontro por exemplo uma força claramente em confronto com a época e mesmo que não directa, nas mais importantes personagens femininas que criou. Quer em Os Maias através de Maria Monforte e Luísa de O Primo Basílio é abordada a questão do adultério feminino, uma vez mais de forma amplamente conseguida, uma vez que triunfam em cada narrativa, numa imensa ousadia de Eça considerando um dos assuntos tabus da época. A personagem Juliana de “o Primo Basílio” e a forma absolutamente irónica com que Eça a coloca a chantagear Luísa, confere-lhe uma das personagens mais interessantes e corajosas na obra de Eça.

Eça de Queirós estilhaçou, tal como já referi, a hipocrisia de determinados sectores da sociedade da época. Falou dos temas tabus, infidelidade feminina, agitou o modelo/instituição família, jogou até com relações incestuosas, criticou ferozmente a igreja católica, etc. Poucos autores ousaram mexer com tantos modelos sociais, descrever inacabavelmente o nosso mundo de fantasmas, ainda para mais com resultados tão felizes. Pensei até, que pena não ter visto Stanley Kubrick adaptar uma obra de Eça. De certa forma vejo uma forma na génese criativa e de pensar a complexidade das relações humanas, que é transversal aos dois autores.

Um bom exemplo de uma muito bem conseguida adaptação cinematográfica de uma historia de Eça de Queirós é a obra do cineasta Brasileiro Daniel Filho com “O Primo Basílio”. Reparem como houve também a preocupação de construir uma obra cinematográfica baseada no livro, mas profundamente adaptada ao universo da sociedade brasileira de meados do séc. XX. Criando pontes analógicas com a realidade da sociedade lisboeta do Séc. XIX.

Continua…

Sobre o filme. (O Primo Basilio) - Daniel Filho
Para este 2º romance de Eça, em que o romancista fazia o espelho da futilidade reinante na sociedade lisboeta do séc. XIX, atacando directamente a classe burguesa, Daniel Filho opta cuidadosa e inteligentemente por encaixar ou transferir a história para o Brasil do séc. XX, mais concretamente a cidade de São Paulo no ano de 1958. Vivia-se uma época áurea em alguns aspectos. Foi a época do arquitecto Óscar Niemeyer, responsável pela projecção e desenvolvimento de uma nova capital chamada Brasília. Daniel Filho é atento à transversalidade e versatilidade do romance de Eça, e, faz desta adaptação uma das mais bem conseguidas que vi no cinema, em anos. De facto, o filme está embebido de uma condução e ritmo narrativo, que associado ao fantástico trabalho dos actores, excepção feita talvez do esforçado, Reynaldo Gianecchini como Jorge. Perdoem-me as fãs! Pode ser galã, mas não consigo gostar de um trabalho deste simpático e intrépido actor, muito aquém do que exige a sua personagem. Ainda para mais, na exigente tarefa de interpretar o “cornudo” (risos).

O “Primo Basílio” é dos poucos filmes que até hoje, e, após sair da sala provocou-me um desconforto perturbante. Apercebi-me do incómodo feroz, das duas pessoas que tinha sentadas ao meu lado e que eram, completamente desconhecidas para mim. Esse desconforto vem também, de uma convergência plena entre o plano cinematográfico de Daniel e literário de Eça, como por exemplo, a descrição detalhada das personagens. Permitam-me uma vez mais, sendo no caso do cinema, uma tarefa muitíssimo mais difícil.

Tendo já assistido ao vivo à cumplicidade entre Glória Pires (Juliana) e o Director (como se diz no Brasil) Daniel Filho, percebe-se com grande ajuda do filme, o dificílimo compromisso de tornar Glória Pires numa Juliana credível. Aliás, a actriz dizia que seu medo de parecer feia, era muito inferior ao medo de parecer igual a Marília Perâ (um de seus ídolos) que já havia feito a adaptação para a mini-série brasileira em 1988. Ao que Daniel Filho respondeu, dizendo qualquer coisa do género: “Marília não quis ir até ao fim mesmo, você vai-me prometer que vai ficar feia mesmo”.

Esta referência à parte, à a actriz Glória Pires, é não só necessária como justa. Sendo um imenso admirador da actriz Marília Perâ e não tendo assistido à mini-série, claro que fico sempre algo reticente. Não se deve comparar textualmente duas grandes actrizes que fazem em épocas diferentes uma mesma personagem, seria tão errado como comparar um livro e um filme. Quero apenas dizer… que: desde a 1ªcena em que Glória Pires aparece no filme, o desconforto do espectador vai-se ampliando e multiplicando. É simplesmente sublime o trabalho da dupla, Pires-Filho. A actriz vai aparecendo sempre aos poucos, como que uma aparição, um fantasma, revelando-se a cada apontamento, a cada maneirismo, “maravilhosamente” -feia. Incrivelmente bem conseguido. Mérito brutal da actriz, mas obviamente, o caso típico de uma grande Direcção de Actores.

Uma nota também para dizer, que o Brasil é provavelmente o país do mundo, onde melhor se filmam as cenas de sexo e erotismo. Para eles é uma escola natural. Sexo é vida. E eles são mestres a filmar o nosso quotidiano. Daniel Filho fez, duas das cenas, mais arrebatadoras de erotismo, que vi num filme até hoje. Agora lembrem-se do “Crime do Padre Amaro” versão portuguesa (é preciso sublinhar) e pensem no equivoco de cenas entre Chaves e Currula.

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