terça-feira, 6 de março de 2007

A Última Hora: O verdadeiro filme sobre o 9/11


A Última hora

Por: Tiago Pereira da Silva

Nem todas as fórmulas cinematográficas sobre o 11 de Setembro revelaram ser infalíveis. Bem pelo contrário. E estou a falar de filmes como produtos, ou obras da 7ª arte, e, até mesmo como sucessos de bilheteira. O ano de 2002 foi o ano do lançamento do filme A última hora (tradução portuguesa) que, ao que me recordo, foi venerado pela maioria dos críticos. Devo dizer, desta vez, que: não posso estar mais de acordo!
O filme é uma lição de cinema a todos níveis, sem desprezo pelas fórmulas clássicas e modernas. Mas não é só isso que importa referir aqui. O equilíbrio narrativo do mesmo, sustentado pela figura central Edward Norton (no seu melhor) que é de uma leveza e ao mesmo tempo de uma força que, em meu entender, faz este filme ter uma espessura e uma fórmula mágica. Norton é Monty Brogan que vive as 24 horas que precedem a sua recolha a uma penitenciária, onde irá cumprir sete anos de prisão por tráfico de droga.

A encenação e composição de Spike Lee são ao nível de obras como (Summer of Sam) – portanto magistrais. O ritmo narrativo é perfeitamente conseguido para transmitir a ideia de que o ser humano é prisioneiro do tempo. E nesta obra, as horas e os minutos são geridos com mestria a “conta-gotas”.
Norton é a figura central, gere a sua personagem com uma interpretação irrepreensível, de certa forma angustiada mas sobretudo revoltada e muitas vezes desesperada. A consistência da sua interpretação é aliada à força de um elenco secundário de luxo, com nomes tão importantes como: Philip Seymour Hoffman, Barry Pepper, Rosario Dawson, Anna Paquin, etc. Mas vamos esquecer os nomes, pois existe em cada um deles um desespero contido mas visível, e em crescendo – eles são as personagens. Não representam, vivem a dor e o medo.

O que me fez escrever sobre A última hora foi não só o facto de o ter revisto, mas a invocação, do brilhantismo, da cena da casa de banho. Monty que se encontrava na casa de banho do bar de seu pai, depara-se com algo escrito no canto inferior direito – a expressão Fuck You. A partir daí são 5 ou 6 minutos de pura magia cinematográfica. A sua personagem “leva-nos”, através de um monólogo, ao multifacetado e multi-complexo mundo étnico e cultural da sociedade nova-iorquina. A revolta de Monty por tudo o que lhe está acontecer e a gestão do seu sofrimento e revolta, terminam (ou começam) com uma complexa conversa consigo mesmo frente ao espelho. Fuck this city, and every one in it. A auto-paródia resultante de uma figura que fala consigo própria, como se fosse um anjo vs diabo, a culpar toda a cidade, etnias, credos e grupos sociais que se encontram nas ruas de Nova Iorque pela sua própria miséria.
Edward recita uma espécie de um rap em crescendo, como que falado – a ambígua e paradoxal visão do “estrangeiro em nossa casa”.

A fórmula soberba com que Spike Lee nos vai revelando a suposta “origem do mal” enquadrando a revolta da personagem com aquilo que seria o espelho social e o pensamento colectivo da Nova-Iorque do pós 11 de Setembro, aliada à auto-ironia do espelho como símbolo metafórico, fazem desta cena um ícone cinematográfico de tão simples e complexa que é.

O monólogo de: A última Hora (Spike Lee)

Transcrição em português. Perdoem-me se existirem alguns erros na tradução.

Vai-te tu foder, toda esta cidade e todos os que vivem nela.
Fodam-se os ambulantes vendendo comida e a pedir dinheiro,
e rindo de mim pelas costas.
Fodam-se os lavadores de vidros de carros
Sujando o pára-brisas – limpo do meu carro.
Arranjem um maldito trabalho.
Fodam-se os Sikhs e os paquistaneses que
voam pelas avenidas com os seus táxis fodidos,
com caril exalando pelos poros, empestando todo o meu dia
terroristas em treino. Parem com essa merda!
Fodam-se os Chelsea Boys.
Com os seus peitos encerados e os seus bicipes bombeados
Indo por aí fora em direcção aos meus parques e aos meus cais
Mostrando os seus paus no canal 35!
Fodam-se os donos das mercearias coreanas
Com as suas pirâmides de fruta caríssimas
E as sua tulipas e rosas embrulhadas em plástico.
Dez anos neste país e ainda não sabem falar inglês.
Fodam-se os russos de Brighton Beach.
Mafiosos sentados nos cafés, a beber chá com óculos escuros
Com cubos de açúcar no meio dos dentes,
Andando, negociando e planeando.
Voltem para a vossa maldita terra.
Fodam-se os Hasidim e os seus chapéus pretos
a subir e a descer pela rua 47 th
nas sua gabardinas sujas com caspa deles,
vendendo diamantes sul-africanos frutos do apartheid.
Foda-se o pessoal de waal street.
Pretensiosos e mestres do universo.
Armados em filhos da puta Michael Douglas-gordon gekko
Imaginando maneiras de roubar trabalhadores inocentes
Completamente “Cegos”.
Mandem esses desgraçados da Enron para a cadeia
Para toda a vida.
Pensam que o Bush e o Cheney não sabiam nada dessa merda?
Não me façam rir.
Fodam-se os porto-riquenhos.
Vinte paus por cada carro, enchendo a lista do serviço social.
A pior parada desta cidade.
E não me deixem começar a falar dos dominicanos,
Porque fazemos porto-riquenhos parecerem bons.
Fodam-se os italianos de Bensonhurst com os seus cabelos
De palmeira e os seus sobretudos de nylon, os seus medalhões do santo.
Balançando os tacos de baseibol do da época que o Jason
Estava a tentar as audições para os “Sopranos”
Fodam-se as viúvas do Upper East Side com os seus lenços
E as suas cicatrizes Balducci de 50 dólares.
As sua caras gordas sendo puxadas, esticadas e levantadas para ficarem firmes e brilhantes.
Tu não enganas ninguém, queridinha.
Fodam-se os irmãos Uptown.
Eles nunca passam a bola, eles não querem defender,
Eles dão sempre 5 passos de cada vez que vão fazer um
Layup e depois querem dar a volta e por toda a culpa nos brancos.
A escravidão acabou há 137 anos. Sigam em frente.
Fodam-se os polícias corruptos e a sua mania dos 41 tiros.
Escondendo-se atrás do muro azul do silêncio.
Vocês traíram a nossa confiança.
Fodam-se os padres que colocam as suas mãos nas calças de
Crianças inocentes. Fodam-se as igrejas que os protegem,
entregando-nos ao diabo. E já que estamos nesta, foda-se o
J.C. Ele livrou-se facilmente …
Um dia na cruz, uma semana no inferno, e todas as aleluias de
Uma legião de anjos pela eternidade.
Tenta ficar 7 anos na maldita Otisville, J.
Foda-se o Osama Bin Laden, Al Qaeda, e os desgraçados
Dos que cavam as cavernas – idiotas fundamentalistas
de todo o mundo.
Em nome de milhares de inocentes assassinados,
Eu rezo paraque passem o resto da vossa eternidade
com as vossas armas de merda arder no inferno
com o fogo da gasolina dos “aviões”.
(…)
Poderá ser visto na íntegra no Youtube: 25th Hour

segunda-feira, 5 de março de 2007

O´Questrada: Qualquer coisa mudou no panorama musical português...

O fenómeno musical que veio do lado de lá... bem do lado do cu do Cristo Rei!
O´questrada segundo Tiago Pereira da Silva

Esta é uma daquelas tarefas ingratas. Escrever sobre esta banda que transformou a minha mente. Que fez surgir algo de novo.
Quer dizer... Para quem já os viu e me pode entender um pouco melhor, os O´questrada são anti-classifcações... são o que eu chamaria de Worldmusic sem o conceito actual do mesmo. São uma indefinição no melhor sentido do termo.
São, para mim, o maior fenómeno musical surgido em Portugal nos últimos tempos.
Sim vou tentar não dizer mais nada.. porque tudo fará mais sentido - ouvindo os O´questrada.

Rubrica: A escolha do dia -


O Medo de Amar é o Medo de Ser Livre do álbum Vento de Maio

Composição: B.Guedes/F.Brant

Por: Tiago Pereira da Silva

A "nossa" pimentinha (alcunha simpaticamente colocada por Vinicius de Moraes fruto do seu , tantas vezes reconhecido mau génio) aventura-se num prodigioso tema que sem a sua interpretação perdia a sua mais que nítida adjectivação.

Estou em crer tratar-se de um dos mais geniais discos de Elis, com temas muito pouco conhecidos até dos mais aficionados fãs da cantora. Aqui não temos nenhum dos grandes "hits" mas temos Elis e a companhia da sua super banda no final do ano de 78 e inicio de 79. Um dos resultados mais impressionantes da dupla Elis/César Mariano. No tema que invoquei em cima, podem "partir a cabeça" a tentar adivinhar quem é que toca aquela guitarra excepcional.

Oiçam também o arrombo de sua voz no tema Calcanhar de Aquiles conjugado, na perfeição, com um walking piano de César Camargo Mariano. Ou porque não, o tema que Gilberto Gil fez para si - Rebento.
Nunca procurei uma lista, daquelas que serão consideradas pelos críticos como as maiores cantoras de musica do século XX. Mas nem preciso. (E, não considerando cantoras como Maria Callas associadas ao canto erudito).
Já sei que devem ser todas norte-americanas.
Para mim Elis seria presença fixa em qualquer lista das dez mais importantes e influentes cantoras de sempre, a par de nomes como Bessie Smith, Billie Holyday, Ella Fitzgerald, Nina Simone, para não citar outras.


O medo de amar é o medo de ser
Livre para o que der e vier
Livre para sempre estar onde o justo estiver
O medo de amar é o medo de ter
De a todo momento escolher
Com acerto e precisão a melhor direcção
O sol levantou mais cedo e quis
Em nossa casa fechada entrar
Prá ficar O medo de amar é não arriscar
Esperando que façam por nós
O que é nosso dever: recusar o poder
O sol levantou mais cedo e cegou
O medo nos olhos de quem foi ver
Tanta luz

domingo, 4 de março de 2007

O Poço

Afundas-te às vezes, cais
no teu fosso de silêncio,
em teu abismo de cólera orgulhosa
e só a custo consegues
regressar, mas ainda com vestígios
do que achaste
nas profundezas da tua existência.

Meu amor, o que encontras
no teu poço fechado?
Algas, lama, rochas?
Que vês de olhos cegos
rancorosa e ferida?

Vida minha, no poço
onde cais não acharás
o que no alto guardo para ti:
um ramo de jasmins orvalhados,
um beijo mais fundo do que o teu abismo

Não tenhas medo, não caias
de novo em teu rancor
Sacode as palavras que te feriram
e deixa que voem pela janela aberta.
Elas voltarão a ferir-me
sem que tua as dirijas,
pois foram proferidas em momento de dureza
e esse momento será desarmado em meu peito.

Sorri para mim radiosa
se a minha boca te fere.
Não sou um pastor brando
como os dos contos de fadas,
mas um bom lenhador que reparte contigo
terra, ventos e espinhos dos montes.

Ama-me tu, sorri,
ajuda-me a ser bom.
Não te refiras a mim, que será inútil,
não me firas a mim porque te feres.

Pablo Neruda in Os Versos do Capitão

sexta-feira, 2 de março de 2007

quinta-feira, 1 de março de 2007

Rubrica: A escolha do Dia - "João Gilberto de saias"


Rosa Passos: Canta Caymmi (2000)


Por: Tiago Pereira da Silva

Continuando no universo da musica brasileira, mais concretamente dos sambas-canção e bossa-nova, gostaria de dedicar a escolha de hoje a outra cantora, que infelizmente, é pouco reconhecida pelo grande público. Confesso que a primeira vez que ouvi um jornalista referir-se a Rosa Passos como João Gilberto de saias não achei particularmente elogioso. Essa mania irritante dos jornalistas encontrarem sempre uma referencia. Mais tarde pensei o negócio deve ser sério mesmo. Rosa Passos é o melhor da Bossa-nova da actualidade. Não sendo propriamente uma "novata" Rosa tem hoje a maturidade artística e melódica que reconhecemos exactamente aos grandes intérpretes. Este disco é, para mim, o expoente máximo dessa expressão no canto e violão de Rosa Passos, se calhar exactamente por encontrar-se com o universo do seu novo e velho amor - Dorival Caymmi: Procure ouvir a versão deste disco de: Milagre, Vatapá e Vestido de Bolero. É por essas e por outras, que o meu coração musical está tantas vezes ao sul do equador.

FICHA TÉCNICA
Produtor: Almir Chediak
Don Chacal: percussão Erivelton Silva: bateria Fábio Torres: piano Jaguara: percussão Jorge Helder: baixo acústico Lula Galvão: arranjos, violão e cavaquinho Paulo Paulelli: baixo acústico Rodrigo Ursaia: sax tenor e flauta Sérgio Galvão: sax soprano


Crítica de Tárik de Sousa:

A Bahia deu régua e compasso ao samba nascido nas casas das tias festeiras que se estabeleceram no centro do Rio no começo do século. Mas o samba propriamente baiano tem peculiaridades que o mestre Dorival Caymmi poliu e sofisticou para uso nacional. O emprego de acordes alterados em seus temas buliçosos de aparência simples transformaram a obra do compositor numa via de mão dupla da tradição com a modernidade. Não por acaso, tanto a bossa nova de João Gilberto quanto o tropicalismo de Caetano Veloso e Gilberto Gil, para ficar apenas nos conterrâneos, utilizaram seus alicerces semoventes. A também baiana Rosa Passos é discípula declarada do minimalismo joãogilbertiano de quem assimilou o diálogo intenso com o violão e o fraseado de recorte rítmico elaborado. Voz curta que prefere a insinuação e o sombreado à nota ferida, Rosa singra os vários Caymmis. O sincopado e dengoso aquarelista de Você Já Foi à Bahia?, Vatapá, Rosa Morena, Samba da Minha Terra e Vestido de Bolero e o épico expressionista das marinhas Milagre e O Bem do Mar. O remansoso dos sambas canções de sua fase carioca (Marina, Só Louco, Sábado em Copacabana, Você Não Sabe Amar) e o inovador nas aliterações rítmicas (Doralice) capaz de casar valsa & bossa (Das Rosas). Centrado nos arranjos e violão de Lula Galvão e numa pequena base instrumental, Rosa Passos Canta Caymmi realça com delicadeza e despretensão a presença gigantesca do Buda Nagô (como o chamou Gilberto Gil) na MPB.