terça-feira, 19 de junho de 2007

MPB: Uma Reflexão


Nós ouvimos há pouco tempo, em um debate na tv Educativa do Rio, a afirmação de que em nenhum outro lugar do planeta a união da poesia com a música se realiza de maneira tão rica quanto no Brasil.

Não sei se é possível dizer isso, não tenho a certeza. Sei que a música popular americana é a música do Cole Porter e do Bob Dylan.
No Brasil, para o bem e para o mal, é mais fácil essa aproximação entre as áreas da cultura e as de cultura de massas. Talvez porque não tenhamos uma sociedade muito desenvolvida.

Os debatedores citavam a mim e ao Chico Buarque, como exemplos de realização feliz dessa união entre a poesia e a música. Pode ser. O Chico, então, é de uma capacidade impressionante no trato com a palavra. No meu caso, talvez admitindo ser mais “suja” a minha obra, vejo que isso se dá porque tenho ambição diferente da ambição de Chico, que é a de mexer na estrutura subjacente à criação, no ambiente que possibilita a criação; não é o caso de criar uma peça dentro do mundo dado, mas mexer nesse mundo dado.


Para mim, se torna importante justapor “Um tapinha não dói” – que é um funk hostilizado pela “inteligência” com minha canção “Dom de iludi” (que, por sua vez, é uma resposta a uma canção de Noel Rosa, dos anos 30). Interessa-me esse tipo de atitude. Essas coisas é que compõe a minha poesia. Mais do que atentar para a palavra certa, para o verso, em que o Chico é mestre. Mas são temperamentos diferentes e projectos diferentes.

Mas o nível é alto, sim. Tanto no caso dele como no meu, é alto mesmo. Se bem que, em linhas gerais, o nível do João Gilberto é maior do que tudo isso. E o nível de António Carlos Jobim como compositor, também.
E tenho dito.

Caetano Veloso

Vamos perceber melhor, através de um dos bons exemplos, no cancioneiro genial de canções escritas em português:

Vaca Profana
Caetano Veloso

Respeito muito minhas lágrimas
Mas ainda mais minha risada
Inscrevo, assim, minhas palavras
Na voz de uma mulher sagrada
Vaca profana, põe teus cornos
Pra fora e acima da manada
Vaca profana, põe teus cornos
Pra fora e acima da man...
Ê, ê, ê, ê, ê,
Dona das divinas tetas
Derrama o leite bom na minha cara
E o leite mau na cara dos caretas

Segue a "movida Madrileña"
Também te mata Barcelona
Napoli, Pino, Pi, Paus, Punks
Picassos movem-se por Londres
Bahia, onipresentemente
Rio e belíssimo horizonte
Bahia, onipresentemente
Rio e belíssimo horiz...
Ê, ê, ê, ê, ê,
Vaca de divinas tetas
La leche buena toda en mi garganta
La mala leche para los "puretas"

Quero que pinte um amor Bethânia
Stevie Wonder, andaluz
Como o que tive em Tel Aviv
Perto do mar, longe da cruz
Mas em composição cubista
Meu mundo Thelonius Monk`s blues
Mas em composição cubista
Meu mundo Thelonius Monk`s...
Ê, ê, ê, ê, ê,
Vaca das divinas tetas
Teu bom só para o oco, minha falta
E o resto inunde as almas dos caretas

Sou tímido e espalhafatoso
Torre traçada por Gaudi
São Paulo é como o mundo todo
No mundo, um grande amor perdi
Caretas de Paris e New York
Sem mágoas, estamos aí
Caretas de Paris e New York
Sem mágoas estamos a...
Ê, ê, ê, ê, ê,
Dona das divinas tetas
Quero teu leite todo em minha alma
Nada de leite mau para os caretas

Mas eu também sei ser careta
De perto, ninguém é normal
Às vezes, segue em linha reta
A vida, que é "meu bem, meu mal"
No mais, as "ramblas" do planeta
"Orchta de chufa, si us plau"
No mais, as "ramblas" do planeta
"Orchta de chufa, si us...
Ê, ê, ê, ê, ê,
Deusa de assombrosas tetas
Gotas de leite bom na minha cara
Chuva do mesmo bom sobre os caretas...

"Um encanto esse filho de Dona Canô e Seu Zezinho, nascido em Santo Amaro da Purificação, BA, em 07 de agosto de 1942.
Caetano Veloso é um incansável inventor de arte que nossa imaginação jamais poderia perceber, buscando o intangível e o inatingível, retirando sons, gestos e palavras do mais árido território, capaz de traduzir o concreto, a dor, um jeito, uma paisagem ou pessoa na mais variada e sutil percepção da existência.

Revolucionário em sua poesia nos presenteia com fraseados sonoros que movem nossa alma fazendo-nos vibrar - e consegue mostrar a importância não somente de estarmos vivos como também de que podemos/devemos fazer pela vida.

Caetano nos toca sutilmente com a arte de parâmetros próprios, renovando a linguagem artística, musicando poesias concretas, poetizando sons de timbres desconexos e criando a estética musical.

O que mais impressiona neste "baiano-estrangeiro" de Santo Amaro da Purificação (como bem disse Augusto de Campos), é sua capacidade de mostrar as possibilidades da música provocando verdadeiros curtos-circuitos sociais".

Caetano é a "mais completa tradução" da transformação, de tempo e espaço.

Susana Gigo Ayres






Sem comentários: