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Por: Mário Lopes (****)
As luzes, todas as luzes do Coliseu estão acesas. O público, de pé, aplaude. O concerto terminou há uns bons dez minutos e pede-se encore. O encore é isto: Cat Power fazendo pantomina em palco, disparando imaginárias setas de Cupido ao público, atirando-lhe flores, atirando-lhe alinhamentos dispersos. No esgotado Coliseu lisboeta, nem sinais da mulher que há alguns anos, em Matosinhos, terá esgotado a paciência de um público devoto com humor etílico imprevisível.
Ali, a Cat Power que ascendeu de figura de culto indie a fenómeno transversal - demonstrou-o na reverência prestada por um público etária e esteticamente heterogéneo. Ali, uma intérprete arrebatadora, culpa de uma voz quente e expressiva, que parece sentir o peso de cada palavra, culpa de uma banda de eleição formada por Judah Bauer, da Blues Explosion, o baterista Jim White, dos Dirty Three, o baixista Erik Paparazzi e o antigo líder dos Delta 72, Gregg Foreman, aqui convertido aos teclados. São eles que, durante duas horas, a conduzem com precisão e destreza de combo soul pelas versões de Jukebox e pelas canções de The Greatest que compuseram a maior parte de concerto tão inesquecível quando repleto de imperfeições.
Entenda-se: muito do que Cat Power tem de arrebatador nasce, também, da indecisão do gesto, da forma como, enquanto swinga pelo palco no cimo das suas botas brancas, parece mover-se a um ritmo diferente do das canções - como se o palco fosse espaço de libertação que, paradoxalmente, traz consigo uma dose considerável de desconforto.
No início, ouvimos uma banda e uma vocalista tacteando o som e o ambiente: A Woman Left Lonely, de Janis Joplin, ou New York, de Sinatra, revista como blues negro. Cat Power tossindo para aclarar a voz e a banda a alinhar-se com o momento. Crescendo. A catarse de Metal Heart, o original de Moon Pix revisto em Jukebox, e Blue, na versão de Joni Mitchell (Cat Power, um Rhodes e o baixo) em que a voz se transformou em eco preenchendo a sala.
Banda e vocalista eram já um só. Os músicos dão-lhe a delicadeza aveludada de The Moon ou Lived in Bars (duas de The Greatest), dão-lhe o stomp soul de Satisfaction, tal como explicado por Otis Redding. O que se segue resume o concerto. Um atabalhoado Angelitos Negros, de Roberta Flack, e ela apoiada numa folha com a letra. Quando termina, pede que acendam a iluminação. Lança-se ao clássico I"ve Been Loving You Too Long, de Otis Redding, a banda cresce com fervor Booker T & The MGs e vemos Cat Power transformada em soul woman de coração exposto. Já não há memória das indecisões e da mediania do início.
Nesse turbilhão soul, e antes de ficar em palco dez minutos fazendo pantomina e agradecendo os aplausos incessantes, Cat Power desce à plateia. O público quer abraçá-la (não é afinal isso que se faz com as estrelas?), mas há algo nela que o intimida. Numa das suas canções, ouvimo-la perguntar: "When I lay me down, will you still be around?" Não damos resposta. Estamos a centímetros dela, mas só conseguimos admirá-la à distância.
in: Jornal - Público
Comentário:
Revejo-me, particularmente, nas palavras do jornalista/cronista Mário Lopes sobre a sua análise, em minha opinião, muito objectiva e imparcial dos acontecimentos do próprio concerto.
De uma maneira ou de outra, penso que é sempre "arriscado" ir para um concerto, demasiado absorvido pelo registo de estúdio, ou, como parece ser o caso da maioria das opiniões que vou “encontrando” (desfavoráveis à actuação de Cat Power e sua banda), no último concerto dado. Ainda para mais como parece ser o caso, tendo sido manifestamente feliz.
Por outro lado parece haver cada vez mais uma espécie de paranóia expectante sobre o alinhamento de espectáculos... como se o/a artista em questão, fosse "obrigado/a" a revisitar repertório e com passagem obrigatória pelos "hits" ou consagrados. Eu distancio-me cada vez mais desta lógica de actuação. Aliás basta analisar a reacção do público quando Cat Power revisitou temas do álbum “The Greatest” já para não falar de alguns mais antigos.