terça-feira, 27 de maio de 2008

Cat Power no Coliseu dos Recreios




Na minha curta vida e no meu, de certa forma limitado, role de espectáculos assistidos, desde pelo menos 1995... fazem do espetáculo de ontem à noite uma ampliação do óbvio -
Chan Marshall além de ter criado um novo projecto musical na minha pessoa (como já havia referido a respeito de outra crónica), mais, entrou para um leque restrito de músicos/artistas que prefiguraram na minha memória estética musical, quem sabe durante todo o tempo de uma vida.

Lembro-me da 1ª vez que vi os Stones em Alvalade, lembro-me do emblemático concerto dos AC/DC no Restelo; dos Van Halen claro; de múltiplos e interessantíssimos artistas que pisaram diversos palcos da Festa do Avante ao longo de anos e anos (o leque é tão extenso que não caberia numa folha A4); mais recentemente de Maria Rita no Coliseu; de Bernardo Sassetti no CCB; numa outra dimensão um espectáculo a solo de Caetano Veloso no Coliseu do Porto, em que sua versão de Currucucucu Paloma terá por certo, atingido o Olimpo; de João Bosco e Gonzalo Rubalcaba no CCB, sinceramente talvez o melhor concerto que tenha visto até hoje de artistas não anglo-saxónicos; sem esquecer claro exactamente à um ano atrás a Dave Matthews Band no Atlântico num concerto irremediavelmente inesquecível. Lembro-me de alguns momentos de cada um como se fosse hoje. É desse impacto que falo quando recordo o concerto de Cat Power e a Dirty Delta Blues Band ontem à noite no Coliseu dos Recreios. Estou certo que ficarei sob o seu efeito durante muito tempo.

Com um Coliseu esgotadíssimo e um atraso de pelo menos meia hora, um certo receio inicial do público pareceu transformar-se numa apreensão sufocante da bancada. Com uma entrada ao género da Dirty Delta Bues Band num registo quase de Jam Session, Chan Marshall demorava-se a entrar, talvez programando mexer com impulso especulativo gerado por alguma imprensa, sobre um eventual regresso a Lisboa, depois do seu último e “traumático concerto” em solo português.
A sua entrada energética, semi-controlada foi criando em todos nós (público) ao seu redor, uma espécie de silêncio catalisador da atenção, para perceber exactamente que Cat Power estaria diante dos nossos olhos e ouvidos. Passo a passo, gesto em gesto, maneirismo em maneirismo, Cat Power foi-se revelando e revelando o seu público. Através dessa, tão sua, lógica de dança multiforme do corpo, Chan Marshall foi explorando a amplidão do seu palco, na mesma medida em que saboreava a reacção desencadeada no público. Quase que poderia apostar o nº de pessoas que terão pensado: ok… ela vai começar a descambar! A sua natureza é, toda ela, incerta. Pegando nas palavras de Raul Seixas, como uma metamorfose ambulante. É assim que eu caracterizaria o incaracterizável.

É inegável admitir a existência de alguns momentos de uma certa monotonia, ou até, “repetição musical”. Poderia aqui falar de um inexplicável
desajuste no som entre a banda (com o baixo por vezes alto de mais) asfixiando quase a voz de Cat Power. O que fica da noite de ontem não é seguramente um registo de imperfeições. Que os houve - houve mas importa sublinhar que foram imensamente bem ultrapassados pelos 4 membros da banda e Marshall. E foi um dos grandes méritos da noite.
Desculpem os mais cépticos, mas o que aquela banda toca é uma enormidade. É preciso anos e anos para se chegar ao nível de (Jim White) Dirty Three's ou (Judah Bauer), the Jon Spencer Blues Explosion's. Durante a versão maravilhosa (em termos de arranjos) do tema “Could We” poderíamos fechar os olhos e lembramo-nos do melhor período dos “The Doors” de “LA Woman”

A voz de Cat Power em certos momentos, pareceu-me de um outro fundamento estético, como poesia esculpida em cimento. Não será dizer nada demais se disser que Chan Marshall canta uma barbaridade. Podem dizer que existe Janis no seu canto, podem dizer que tem Soul de Aretha, mas o seu canto “imperfeito” é o melhor que conheço nos dias de hoje. Dentro do género como é natural.
É claro que tudo isto tem um preço, para um público cada vez menos habituado a um registo Rock-Blues-soul-country - se é que se pode configurar assim.
Já não existem muitas cantoras capazes de transmitir tanta verdade em palco, in a old fashion way…
Ontem lembrei-me de algumas palavras ditas por Tom Jobim para descrever o canto de Elis Regina, que referia exactamente a capacidade excepcional da cantora de colocar todas as emoções da sua vida, ou quotidiano, em palco - nas sua canções, sempre a fervilhar por dentro. Pois bem, Chan Marshall é dessa mesma natureza.
Uma grandeza na exacta proporção de sua fraqueza. E isso é raríssimo encontrar na Indústria Musical de hoje. Mas também é o que comove mais em Marshall, que deixou escapar um: Good enough – I’m OK, I’m lucky, quando lhe perguntado por alguém da plateia «se estava bem?». Tudo isso, ela mistura com sua música, de forma afectuosa sem se deixar dirigir pela razão, de um repertório que vai desde Otis Redding, a Bob Dylan, sem esquecer Joni Mitchell. Revisitando alguns dos seus mais marcantes trabalhos, como “The Greatest”, mas incidindo o fulcro do espectáculo sobre o seu mais recente e aclamado “Jukebox”.

Mas não escrevo para falar de alinhamento ou incursões da artista por este ou aquele universo musical, ficará obviamente para os profissionais da área, e claro, seria de uma imensa ousadia. Quero simplesmente partilhar com o leitor um momento, que muitos de nós assistimos, que estou em crer, ficará como das mais bonitas recordações de uma sala cheia de histórias. Quando Cat Power depois de pedir insistemente ao técnico de luz, para acender a iluminação geral do Coliseu para poder ver o seu público e aquando de uma versão interessantíssima de I’ve Been Loving You Too Long de Otis Redding, ela desce do palco pelas escadas, vai ao encontro do público perto da 1ª plateia e tem uma das cenas mais arrebatadoras que vi uma artista fazer. Tudo aquilo sem uma gota de artificialismo. Com muita emoção e verdade à mistura, Cat Power canta o seu Rio interior - depois de uma apropriação quase louca do tema de Otis Redding.

No final e sem Encore, que foi “substituído” por uma monumental homenagem do público a Chan Marshall com entrega de flores (até pelo teclista da banda), entre apluasos - que Chan fez questão de retribuir, no meio de vénias, acenos, mais vénias, durante mais de dez minutos. Claro que muita da simbologia daquele gesto, remete-nos para um mais que evidente (fazer as pazes) entre Cat Power e o seu público em Portugal. Talvez um pouco em excesso, diria, mas Chan estava obviamente comovida e sem conseguir sair de “cena”. A opção da banda foi não voltar a palco. E também esse gesto (da Dirty Delta Blues Band) diz muito daquele momento especial entre o público e Chan Marshall. Essa fotografia, já ninguém tira da minha memória.

Por: Tiago Pereira da Silva

6 comentários:

Anónimo disse...

Ó tiago, o "traumático concerto em solo portugu~es" de que falas já foi há uns anitos largos. Depois disso, esteve cá no ano passado onde deu um concerto exemplar na Aula magna... :)

Ainda bem que descobriste a Chan... nunca é tarde demais. :)

abraço,

Gonçalo L.

Anónimo disse...

Foi emocionante, de facto, o momento em que ela desceu do palco.

Fantástico concerto!

Tiago Pereira da Silva disse...

Oi Gonçalo! Pois eu sei, mas foi esse - pelo que me foi relatado, em que ela fez umas quantas "birras" e o próprio pianista se passou um bocado com ela.

Wellvis disse...

Eu fui naquele concerto lindo da Aula Magna. Imprevisivel, lírico, apaixonante. E fiquei decepcionadíssimo com este de segunda-feira. Má banda, má escolha de repertório e falta de química com o público que é marca dos seus concertos.. Vamos ver se é da próxima. Ela é sempre bem-vinda por estes lados. Abraços.

Anónimo disse...

Eu não fui a nenhum dos concertos, mas tenho grandes amigos que são grandes fãs da Cat power e disseram que o último concerto dela, na Aula magna, foi fabuloso. Melhor do que este. O concerto de que falo aconteceu há alguns anos, no Porto, durou cerca de três horas e ela cantou no máximo três músicas, arrastando-se o resto do tempo pelo palco. E passou grande parte do tempo a gritar por um amigo meu... Acho que foi uma coisa muito, muito, chata... :D

Anyway, a Chan Marshall é grande. :)

Olha, saca lá o Dear Sir, o Moon Pix e o You Are Free. ;)

Abraço,

Gonçalo L.

flávia disse...

este é um show que ainda desejo muito ver.
sortudo.