domingo, 14 de outubro de 2007

Caetano - Cê veio, para ficar!


Ele avisou-nos, e, há bem pouco tempo, mas ainda houve quem não o levasse muito a sério: “Eu sou eternamente tropicalista”. Então, este concerto, soou-me, como uma atitude inconsciente, para os que vaticinaram o seu fim.

A minha “Transa” com Caetano, já tem uns anos. Talvez poucos, mas inevitavelmente sinápticos. Já vão entender. Devo até acrescentar, antes de começar a história, que era daqueles que à partida, não tinha muita expectativa para este concerto. Fruto até, do que vinha ouvindo sobre a sua digressão, mas sobretudo, pela insatisfação com algumas das últimas coisas que Caetano, tinha feito enquanto musico.

Numa breve história, resumo o que aconteceu. Uma bela tarde, ao chegar a casa, liguei a TV e depois de um insistente “Zapppping”, estacionei vidrado na “Sol music”, canal ainda existente na época (decorria o ano de 1998). Esqueçam tudo, em que se tornou o tema “Sozinho”. E é preciso fazê-lo, realmente, com um certo distanciamento e já agora, despretensiosamente. Agora imaginem-se a ouvir o final da música, pela primeira vez. O engraçado, ou curioso desta história, foi ter-me concentrado, quase exclusivamente, no momento dos aplausos.
Aquela imagem, gravou-se para sempre na minha reminiscência. O figurino, não desconhecido de Caetano Veloso, um homem em plena meia-idade, cabelos brancos, voz docemente envelhecida, provocou, um sentimento de perplexidade na mina pessoa. Remeteu-me para as imensas tardes de uma infância, em que entre, outras coisas, alguém lá em casa ouvia a riquíssima música, do Atlântico sul.
Aquelas rugas, determinantes, de uma imensa expressão no rosto cansado, mas feliz de Caetano, pareciam transportar, uma intensa história de vida. Do som ensurdecedor de uma plateia ao rubro… Vi e ouvi, um homem sentado, depois de guardar seu violão, que com um simples esfregar de mãos nas pernas, ajeitou o cabelo grisalho, muito grisalho mesmo, afastando os braços na direcção do público, com as mãos enunciando o gesto da entrega, seguindo-se o, Amaliamente, eternizado: “Muito obrigado…”. Aquele homem, não o sabia, nem poderia, mas aquele gesto límpido da simplicidade dos que realmente, transcendem na arte e se reconhecem como medíocres, havia criado em mim, inadvertidamente, o maior projecto musical. Um jovem que até então, vivia mergulhado no universo dos Beatles, Stones, Zeppelin e outros monstros do Rock. Mal sabia eu, o duplo sentido desta, recém, descoberta. A ligação perfeita, de dois universos, que para mim na época, não se misturavam.
Esta introdução, necessária, para se perceber que tenho vindo a ler e a ouvir muita coisa, ligada ao universo - Caetano Veloso, tem uma segunda intenção. A de invocar e recordar que também ele, foi e é um grande fã do Neo-Rock inglês.

Caetano Veloso apresentou ontem à noite, no Coliseu dos Recreios, o seu disco mais recente “Multishow Cê - ao vivo”, a digressão do álbum de estúdio de 2006 “Cê”.
Logo nos primeiros sons da batida do baterista Marcelo Callado, percebemos estar na presença de um concerto diferente de Caetano Veloso. E para quem já o viu a fazer de quase tudo, mesmo para esses, o concerto poderá ter suado a fresco, directo, duro, mas surpreendente. Eu, que o acompanho apenas, desde a digressão de “Livro vivo”, já não o ouvia assim, há pelo menos 7 anos. Caetano pulou, dançou, cantou com a energia indisfarçável de um homem, que não nega os 65 anos, mas que paradoxalmente rejuvenesce musicalmente, na sua forma clássica de reinvenção. Ele nunca gostou do monótono...

Para quem imaginava um Caetano, na sua 60ª década de vida, a dedicar-se exclusivamente à herança João Gilbertiana de voz-violão, arrastando-se e desgastando-se na reconstrução de um legado, inegavelmente, importante na música do mundo; para esses, que o imaginavam assim... Desculpem a franqueza, mas enganaram-se redondamente. Aí está ele, camaleonicamente, respondendo aos críticos, que ousaram afirmar (e não foram assim tão poucos), que ele não saberia cantar o rock. Como ele um dia terá dito, que por um acaso, se tornou músico e não, artista-plástico ou cineasta, também vou ousar dizer que Caetano, só por uma partida do destino, não ter-se-á dedicado, exclusivamente, pós-tropicalismo, a ser um cantor rock. Não, que não ache Caetano, o mais importante intérprete vivo, de violão e voz Brasileiro de há muitos anos para cá. E até quem sabe, no mundo. Mas se existe coisa maravilhosa, que este homem nos ensinou, é a da transmissão, de uma insatisfação permanente, na busca de um novo projecto musical, na sua pessoa. Transferível até, para outras esferas da sua vida. Esta Insatisfação, amplamente positiva, e não exactamente, a celebrada por Jagger e os Stones, no eterno “I can´t get no, Satisfaction”, fazem dele, uma matriz cultural, que deveria ser incutida em todos os jovens nas escolas. Só para citar um exemplo.

Mas voltando ao concerto. Quem pretende dedicar-se à música, qualquer que ela seja, teria em Caetano Veloso, um muito bom exemplo de como se constrói um alinhamento musical de um concerto. A inteligência com que Caetano, constrói pontes, mensagens e intertextualidades entre as canções, que escolhe tocar, são demonstrativas, da complexidade de um homem, que se interessa sobre todas as coisas. Não se perdendo na intenção. Nem sendo inconsequente musicalmente.
A incursão de Caetano, fez-se, neste espectáculo, por alguns temas dos mais aclamados discos da sua carreira. Casos de “Nine out of ten” e “You don´t know me” de «Transa», esta última já no «encore», “O homem velho” de «Velo» e “Um Tom” de «Livro», dedicado ao maestro e Jaques Morelenbaum, que como se sabe, foi músico e director musical de Caetano, por mais de 15 anos. Também “Sampa” fez parte do espectáculo, com um arranjo nunca antes visto.Uma das mais belas canções escritas em português, fez-se crua e dura, para um público deveras, já contagiado. Voltando a “Um Tom”, e, voltando porque, foi dos momentos mais belos da noite. Caetano procurou dar, uma sonoridade muito própria, desta magnifica banda de jovens músicos (entre eles, o próprio Caetano), a canções emblemáticas, com arranjos simples de rock, como arrojados, potencializados pela versatilidade de uns jovens Srs. chamados: Pedro Sá (Guitarra e Contrabaixo), Ricardo Dias Gomes (Contrabaixo e teclas) e finalmente, Marcelo Callado (um monstro na bateria).

Mas foi também o concerto de “Como 2 e 2”, ou “Fora da Ordem”, que parece ter feito sentido outra vez, agora que, para mal dos nossos pecados, temos o filho Bush no poder. Aliás, vendo bem, a letra nunca deixou de permanecer actual. Virtude dessa Lupa gigante, que insiste em profetizar o essencial, chamada Caetano Veloso, ou não tivesse dito em 1991: “E o cano da pistola que as crianças mordem, reflectem todas as cores, da cidade que é muito mais bonita, muito mais intensa, do que no cartão postal”. O que mudou desde aí? Ou, a tão proclamada, Nova Ordem Mundial do presidente Bush. Realmente, Cê tem razão, “alguma coisa está fora da ordem”.
Ficou talvez a faltar, (interessantíssima sugestão de uma amiga) a, também, extremamente actual: “Podres Poderes”. Caetano surpreendeu-nos até com, em voz e violão", "Fado de Amália", com a sua visão muito particular do fado. O público rendeu-se claro. Em "Desde que o samba é samba" vimos Marcelo Callado, Ricardo Dias Gomes e até Pedro Sá no acompanhamento, em belos solos instrumentais, sobretudo no particular-bateria.

A reacção do público, foi-se transformando ao longo, das quase duas horas de concerto. Até os mais puritanos, terão resistido enquanto puderam. Lá se terão contentado, com os “Leõezinhos” e “Meninos do rio”. Mas até aí, os músicos se revestiram da imaginação, celebrando novos arranjos, e estabelecendo uma iconográfica versão de “Leãozinho”. Só comparável à de «Fina Estampa ao vivo».
Caetano está vivo e bem vivo. Está jovem e é, seguramente, eternamente tropicalista. Depois de ontem à noite, não restam dúvidas. Caetano é “um tom para todos nós…”.

Por: Tiago Pereira da Silva


PS - Só ficou faltando mesmo, usando um gerúndio bem brasileiro, a música "O Herói".

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